Nessa postagem eu vou aproveitar pra tocar na temática dos supostos "destruidores de clássicos". Quantas vezes você já não ouviu alguém falar "Olha lá, o cara usando o carro antigo pra trabalhar de pedreiro/feirante/florista/(qualquer profissão que se aplique). Caiu em mãos erradas, uma pena! Merecia ser salvo!". Eu mesmo seguia algumas vezes essa concepção superficial sobre esses episódios. Mas será que essa percepção é apropriada?
Carros são produtos fabricados para atender a uma demanda de pessoas que querem se locomover do ponto A ao B. Muitas pessoas que têm poder aquisitivo mais alto compram carros novos, e à medida em que o tempo age gerando desgaste dos itens e a depreciação do conjunto aumenta, eles vão passando para as mãos de outros proprietários, de poder aquisitivo cada vez mais baixo, em curva descendente de conservação. Essa é a regra, o que acontece na maioria dos casos.
Existe um ponto fora dessa curva, que são os carros que são guardados sem uso, ou os que são usados com frequência muito menor, ou que são muito usados porém proporcionalmente e adequadamente mantidos. Essas são as exceções à regra, e é nesse intervalo que reside a nossa distração (hobby), a cultuação dos automóveis antigos e uso eventual quase exclusivo para passeio são uma pequena parcela desse já pequeno grupo.
Ocorre que, quando imersos nesse universo, prestamos mais atenção aos antigos do que os que não são entusiastas. Ao frequentar os encontros, oficinas especializadas e grupos de amigos presenciais e virtuais com esse gosto em comum, talvez acabemos tendo a impressão de que existem muito mais carros antigos preservados do que a realidade. Pode ser que uma reunião com muitos carros antigos concentrados num mesmo lugar ou um perfil de rede social que publique fotos de carros antigos todos os dias (pra trazer o assunto pros dias atuais) passe essa falsa sensação, mas basta comparar com cenas do trânsito no dia-a-dia em várias amostragens de várias cidades, que fica fácil de entender que, na prática, os carros antigos representam uma porcentagem não muito significativa da frota em constante circulação. Pergunte a um não-entusiasta e ele dirá que raramente vê um ou outro carro mais antigo dentro de sua rotina.
Pra ilustrar com dados, de acordo com estudo feito no ano passado pelo Sindipeças (Sindicato Nacional da Indústria de Componentes para Veículos Automotores), 28% da frota são carros com até 5 anos de idade, 55% entre 6 e 15 anos, e 17% têm "16 anos ou mais". Esse último entre aspas porque só considera carros até 25 anos de idade; ou seja, veículos com 26 anos em diante sequer foram contemplados. Não consegui descobrir o motivo, é como se esses carros não existissem pra essa pesquisa. Mas uma outra pesquisa feita pela mesma instituição em 2011, mostra carros com 30 anos em diante, e a queda no número é linear ano a ano, praticamente o tempo todo. Portanto, não foi possível concluir números concretos mas dá pra termos uma noção de que a tendência é que haja redução gradativa na quantidade anual de veículos com essa faixa de idade.
Tudo isso considerado, voltamos ao cenário dos carros antigos frequentemente julgados por estarem sendo usados pra trabalho e supostamente sendo "destruídos". Em muitos casos, os escolhidos pra esses ofícios são carros que já foram depreciados o suficiente pelo mercado e que ao mesmo tempo são resistentes pra aguentar "desaforo". É claro que existem variações de serviço, variações de proprietários e de cuidados com a preservação desses veículos. Portanto, não generalizar já começa sendo uma ótima ideia. Em seguida, podemos considerar que, no ciclo de vida útil de um automóvel, ele começa sendo usado meramente como meio de transporte (seja ele básico, intermediário, esportivo ou de luxo), depois troca de dono algumas vezes, e vai só perdendo valor de mercado com o passar do tempo, até chegar no limite da desvalorização. É geralmente nesse momento (quando o carro tem entre 20 e 28 anos de uso, eu diria) em que eles já atingiram um preço interessante pra quem quer um carro resistente pra trabalho. De 28 anos em diante, já começam a ser vistos com outros olhos e a despertar o interesse desse nicho específico de entusiastas, afinal, no Brasil, com 30 anos (ou 25 anos, em alguns lugares do mundo como alguns estados norte-americanos) já são oficialmente considerados antigos. Essas transições não são concretas e definitivas, não é da noite pro dia que um carro deixa de ser um carro velho negligenciado pra ganhar os holofotes e "se transformar" em antigo cultuado. Mas esses números são estipulados pra formalizar essa classificação.
Depois desse preâmbulo gigantesco, eu ilustro com um exemplo o que foi tratado acima:
Ramos, Rio de Janeiro - RJ.
Carreta e reboque Karmann-Ghia
Conheço muitos que diriam que esse cenário seria "um sacrilégio", porque "está acabando com o carro e com a carretinha, super raros", etc. Percebam que é muito mais interessante admirar a situação positivamente. Inclusive ambos parecem muito bem tratados, mesmo trabalhando. Infelizmente nesse caso eu desconheço a história, mas como eu já falei, há grande chance de ambos terem sido adquiridos com a finalidade de serviço, naquele intervalo de idade em que já desvalorizaram o suficiente. Até porque não faria sentido pagar preço de antigo/clássico pra colocar o carro no batente.
É importante considerar também que muitos desses carros, por não terem valor, foram salvos de irem pra um ferro velho, desmanche ou direto pra prensa. Afinal, é o destino da maioria ser reciclada. Ou seja, não é "mais um que está deixando de ir pras mãos de um colecionador e sendo estragado", mas sim um carro que foi tirado do fim próximo e ganhou mais uma sobrevida na sua função de automóvel, pra consequentemente vivenciar mais histórias a serem contadas.
A moral da história é: sempre que nos depararmos com algum carro mais antigo "fazendo hora extra" com qualquer tipo de serviço, vale muito mais a pena ficar feliz por ele ainda estar rodando do que achar que "podia estar em alguma coleção" ou coisa do tipo. Não são só os carros restaurados, lambidos ou com baixa quilometragem, sem restauro e impecáveis que têm seu valor. Esses mesmos carrinhos cansados e sofridos que não saem de casa só pra passear também têm seu charme e merecem ser admirados... reitero que estou tratando da regra e não da exceção. Se um exemplar de um modelo ou versão muito raro teve sua vida prolongada e está sendo usado como carro de serviço, talvez seja esse um caso em que compense trocar de mão e ser restaurado, pensando na preservação de parte da história. Mas não necessariamente também, uma vez que, pra isso, é necessário que o proprietário tenha interesse em se desfazer e algum comprador esteja disposto a entrar nessa empreitada. Se tudo se alinhar, ótimo. Se não, segue na labuta até o fim dos dias... acontece, não dá pra salvar tudo.
Bom. A ideia nem era escrever tanto, mas acabei me empolgando e avançando, até chegar nesse monte de palavra. Lembro a todos que esse é o meu ponto de vista, não é a verdade absoluta. Ponho-me à disposição pra ouvir a opinião das senhoras e senhores, seja ela convergente ou divergente da que foi aqui exposta. Deem vosso feedback, nunca é demais!